A cidadania na contemporaneidade brasileira
» Por Márcia Regina Saltini
RESUMO: Cidadania ainda é um conceito entendido para muitos como restrito ao direito de votar e ser votado fruto do modelo de Estado Nacional das revoluções burguesas e da negação da dignidade da pessoa humana para todos, incluído a ampliação dos direitos civis, políticos, culturais e sociais da contemporaneidade. No entanto, vivenciamos um Estado Democrático de Direito calcado nas liberdades que permitam o desenvolvimento humano com vistas à emancipação do sujeito de direitos. Nesse sentido cabe ao Estado para além da legalidade assegurar os interesses públicos primários mediante a efetividade do direito à educação, saúde, moradia, renda, mobilidade, alimentação entre outros direitos e garantias individual e coletiva.
Palavras- chave: Cidadania. Democracia. Dignidade da Pessoa Humana.
INTRODUÇÃO
Apesar das discussões sobre o conceito de cidadania ter começado há muito tempo na História da Humanidade e passar por muitas transformações com as revoluções burguesas e o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade; foi no período pós Segunda Guerra Mundial que encontramos o seu significado contemporâneo, especialmente como Direitos Humanos no combate às atrocidades do nazismo e fascismo que violaram a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido a Declaração de Direitos Universais da ONU é uma baliza quanto aos direitos da humanidade.
Artigo I
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
Artigo XXI
[…] Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
[…] Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
[…] A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.
Artigo XXV
[…] Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. (ONU, Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948)
No Brasil a cidadania é um conceito em construção pela negação aos direitos básicos a maioria da população. Desde o período colonial com a escravidão, passando pela República velha com as eleições a bico de pena e o voto de cabresto ser cidadão significou ter poder econômico (com especialistas em fraudar as eleições e a compra do voto era rotina). Essa herança do coronelismo de norte a sul do Brasil ainda hoje traz reflexos para as condições atuais de democracia fruto do controle político de clãs e na luta por justiça social. Nesse sentido, vale destacar a confluência público-privado dos interesses dominantes pelas relações patrimonialistas e de cordialidade da sociedade brasileira que mantém o “mito da democracia racial” (em que não há preconceito e discriminação explícita enquanto cada um se mantém em seu devido lugar), mas ao mesmo tempo nega-se cotidianamente o acesso à existência digna a todos: ricos, pobres, pretos e brancos) representada na cidadania de papel distante da realidade social do povo pelo Estado de Direito.
Recentemente o tema cidadania ganhou os noticiários a partir das manifestações de junho de 2013 em que o povo saiu às ruas capitaneadas pelo movimento “Passe Livre”, o que causou grande perplexidade como se “estivesse adormecido”. No entanto, observa-se no cotidiano da população pobre a luta por justiça social. E ampla divulgação nos grandes meios de comunicação de massa de que trata-se de baderneiros, violadores da lei que impede o direito de ir e vir de quem circula com seu transporte individual pela cidade. Essa questão retoma o debate acerca de quais os limites da liberdade de reunião e manifestação diante do respeito ao direito do outro. Como conciliar esses interesses individuais e coletivos numa cidadã como São Paulo, por exemplo, em que o trânsito já é caótico.
Não podemos esquecer, no entanto, que a luta dos movimentos sociais por moradia, educação, saúde sempre existiu, mas não se dá o valor devido quando não interessa aos poderosos. É como se a cidadania como direito de participação do povo fosse restrita ao direito de votar e ser votado. E ser cidadão significasse escolher líderes distantes das periferias e da realidade social dessas pessoas. E, portanto, escolher representantes “aos olhos dos poderosos” ideais a satisfação de interesses casuísticos e não da maioria excluída.
DESENVOLVIMENTO
Acerca do tema cidadania no presente é relevante situarmos inicialmente os direitos assegurados na Constituição Federal como ponto de partida na análise do tema.
Entre os objetivos no estudo da cidadania é trazer à tona os avanços e retrocessos da sociedade brasileira a partir da Constituição Federal de 1988 (chamada de Constituição Cidadã). Inicialmente em seus art. 1º quanto aos princípios fundamentais estão expressos os princípios:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (CRFB/1988)
O entendimento dos princípios da Constituição permite inicialmente observar que quando se fala em cidadania como acesso a boas condições de vida para todos não se trata de ser a favor de ideologias de partidos A, B ou C, mas ao cumprimento do que está escrito na Constituição. O Direito deve ter um significado na prática social para além do formalismo, portanto, gozar de efetividade.
Essa conjugação de princípios, direitos, garantias individuais e coletivas é o que podemos entender como cidadania no aspecto formal, ou seja, os direitos do art. 1º, 5º, 6º e 14 da Constituição. Falta, no entanto, a materialização dos mesmos. Haja vista como mencionado, cidadania não pode ser apenas instrumento de escolha de representantes a cada quatro anos, mas exercício diário por justiça, segurança e bem-estar social, representados nos interesses públicos primários. (BARROSO, 2013).
O Estado Democrático de Direito (não visa atender a vontade de quem está no poder, mas ao interesse público, portanto a lei visa proteger o povo e não quem governa. Mesmo a função de arrecadação traz em contrapartida o bom uso dos recursos com despesas) tem por fundamento a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político, nesse sentido destaca-se entre os direitos civis, políticos e sociais.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […].
XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I – plebiscito;
II – referendo;
III – iniciativa popular.
- 1º O alistamento eleitoral e o voto são:
I – obrigatórios para os maiores de dezoito anos;
II – facultativos para:
- a) os analfabetos;
- b) os maiores de setenta anos;
- c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.
- 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei:
I – a nacionalidade brasileira;
II – o pleno exercício dos direitos políticos;
III – o alistamento eleitoral;
IV – o domicílio eleitoral na circunscrição;
V – a filiação partidária;
VI – a idade mínima de:
- a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;
- b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;
- c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;
- d) dezoito anos para Vereador.
- 4º São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos. (BRASIL, CRFB/1988)
A partir da Constituição de 1988 como fruto da luta pela redemocratização após um longo período de governo civil-militar 1964 a 1985, vivenciamos hoje uma estabilidade democrática. Se hoje estamos diante da crise da representação política e o povo se manifesta exigindo seus direitos nas ruas, como em junho de 2013 por redução no preço das passagens, acesso à mobilidade urbana, moradia, saúde, entre outros direitos básicos, é porque está assegurado o direito de manifestação pacífica, art. 5º, inciso XVI.
Entre os direitos de cidadania destacamos a educação como essencial, tanto para que se possa usar da liberdade expressa como direito civil mediante uma consciência crítica que permita lutar por direitos na prática para que todos possam se desenvolver adequadamente. É necessário um entendimento do seu papel social como sujeito para que possamos transformar a sociedade e alcançarmos um padrão razoável de civilidade. Portanto, o direito à educação se insere como instrumento de mudança social prevista na Constituição Federal, art. 205 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394/96).
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, CRFB/1988)
Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades:
II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. (BRASIL, Lei 9394/96).
A importância da educação como direito também se faz presente no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/1990 e no recente Estatuto da Juventude, Lei 12.852/2013. Senão vejamos:
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, Lei. 8069/1990)
ESTATUTO DA JUVENTUDE
[…] Do Direito à Cidadania, à Participação Social e Política e à Representação Juvenil
Art. 4o O jovem tem direito à participação social e política e na formulação, execução e avaliação das políticas públicas de juventude.
Parágrafo único. Entende-se por participação juvenil:
I – a inclusão do jovem nos espaços públicos e comunitários a partir da sua concepção como pessoa ativa, livre, responsável e digna de ocupar uma posição central nos processos políticos e sociais;
II – o envolvimento ativo dos jovens em ações de políticas públicas que tenham por objetivo o próprio benefício, o de suas comunidades, cidades e regiões e o do País;
III – a participação individual e coletiva do jovem em ações que contemplem a defesa dos direitos da juventude ou de temas afetos aos jovens; e
IV – a efetiva inclusão dos jovens nos espaços públicos de decisão com direito a voz e voto. (BRASIL, Lei 12.852/2013)
Acerca da relevância do Estatuto da Criança e do Adolescente do Estatuto da Juventude se dá com vistas à formação para o exercício da vida pública, bem como a tomada de consciência do seu papel político como cidadão, inclusive com vistas aos direitos civis, políticos e sociais. Para tanto, é relevante conhecermos o que foi firmado na CF/1988 e na LDB/96 em relação à cidadania, tendo um olhar crítico, já que o Brasil segue a passos lentos no cumprimento do que foi determinado pela CF/1988 e pela própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em especial pela visão limitada da cidadania restrita ao voto, já mencionado. Porém, o direito ao voto não garante a um indivíduo ser um cidadão pleno. Para que se concretize a cidadania esse direito deve vir acompanhado de certas condições de nível econômico, social, político e cultural. E como já visto tudo passa pela educação de qualidade.
Nota-se que não há dúvidas sobre a importância da CF/1988 quanto à garantia dos direitos civis, sociais e políticos, pelo menos na forma de lei, mas,
A construção de uma cidadania plena prefigura a transformação da sociedade como um todo por meio de uma conscientização política que permita, por parte dos indivíduos, a compreensão crítica e participativa da realidade social e política. Isso pressupõe a organização, por exemplo, de um sistema educacional que possibilite o efetivo desenvolvimento crítico, que seja realmente inclusivo, e garanta também, a ampliação de mecanismos que permitam a participação da população na administração pública. (FERREIRA, 2012).
CONCLUSÃO
O Estado Democrático de Direito tem por base a supremacia da Constituição Federal mediante a realização do interesse público primário pela justiça, segurança e bem-estar social (educação, saúde, mobilidade urbana, moradia, alimentação como direitos do cidadão, ou seja, a efetividade dos direitos civis, políticos e sociais com fundamento na dignidade da pessoa humana). Isso implica em instituições legítimas quanto aos interesses do povo e não de grupos dominantes. Na prática os interesses públicos e privados se confundem na burocracia, no patrimonialismo, na corrupção, etc.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional. Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2013.
BRASIL, Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. 14. Ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2003.
______. Lei 8.069 de 13 de Julho de 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso 17 de ago. 2014.
______. Lei 9.394 de 20 de Dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Disponível em:< http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf>. Acesso 17 de ago. 2014.
______. Lei 12.852/2013. Estatuto da Juventude. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12852.htm>. Acesso 17 de ago. 2014.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania: coleção primeiros passos. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998.
FERREIRA, Fabiana. A SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO: concepções de professores sobre formação crítica para a cidadania. Revista Estudos de Sociologia. V. 2, n. 18 (2012). Disponível em: < http://www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/issue/view/7>. Acesso 17 de ago. 2014.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em 17 de ago. 2014.
Fonte: http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-cidadania-na-contemporaneidade-brasileira,49521.html